quarta-feira, 7 de março de 2018

Florianópolis integra a rede de ação coletiva BRCidades


A professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) Erminia Maricato e o arquiteto e urbanista Paolo Colosso lançaram nesta terça-feira (6) em Florianópolis o Projeto Brasil Cidades (BRCidades), ampla rede de ação coletiva em torno da agenda urbana. A iniciativa já tem Núcleos em cinco cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte) e, agora, Florianópolis. O Plenarinho da Assembleia Legislativa lotou para a apresentação da proposta, cujo manifesto pode ser lido em https://www.brcidades.org/assineomanifesto 
Lideranças do movimento social e sindical, estudantes, professores universitários, parlamentares e arquitetos e urbanistas acompanharam a exposição sobre o BRCidades, que já tem atividades como, em março e abril, o curso de extensão “Viver na cidade: conflitos, participação e cidadania ativa”, em Itaquera (SP), que é resultado do diálogo com a Igreja Povo de Deus em Movimento (IPDM), a UNIFESP e o Levante Popular da Juventude. Veja abaixo entrevista com Erminia Maricato sobre a realidade nas cidades brasileiras e a proposta do BRCidades.


As cidades revelam a luta de classes e a tensão entre o modelo legal e o modelo real. Como essa discrepância aparece?
Ermínia Maricato - A legislação é de fato modelo; a cidade é uma realidade. Nós temos uma tradição no Brasil, para a qual vários estudiosos chamaram a atenção – Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Schwarz – de uma distância entre teoria e prática, entre discurso e prática. São ideias fora do lugar. Então, existe todo um ideário, são valores que, na verdade, sustentam a dominação, o poder e o discurso, mas que não chegam à realidade. Valores liberais, valores muitas vezes igualitários, mas a realidade é profundamente discrepante desses valores. A realidade é muito desigual, é muito desumana mesmo, eu diria, ela guarda raízes escravistas que são muito atuais, que estão muito presentes. Então é disto que a gente está falando. Nós temos um arcabouço legal que é festejado no mundo todo. O Estatuto da Cidade [Lei 10.257, de 10 de julho de 2001], a Política Nacional de Mobilidade Urbana [Lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012], esta lei é avançadíssima. Muita gente estuda o Jan Gehl [arquiteto e urbanista dinamarquês, autor do livro Cidade para Pessoas] para aplicar nas cidades brasileiras como se isso fosse possível. Nossas cidades são completamente diferentes das cidades da Dinamarca. Então, eu acho que nós precisamos mergulhar na realidade, tirar o véu que encobre essa realidade das nossas cidades e trabalhar com planejamento, com legislação, para responder a uma realidade que não é só injusta socialmente, ela é injusta ambientalmente. Ela é insustentável. As nossas cidades, por exemplo, comprometem toda a rede hídrica, rios, lagos, córregos, com lixo, com esgoto. No entanto, temos um quadro de leis sobre o meio ambiente avançadíssimo. É disso que a gente está falando. Mas como superar essa distância entre teoria e prática, discurso e prática? É com luta social. Nós precisamos o tempo todo capilarizar a organização social como nós já fizemos nos final dos anos 1970, nos anos 80, organizar um espaço de cidadania, de disseminar informação que contrarie essa dominação ideológica tão forte.

Nesta realidade, o que é o analfabetismo urbanístico e como ele se manifesta, na mídia em especial?
EM – A mídia, especialmente, mas a elite, a classe dominante trabalha com uma representação da cidade que foge muito da realidade. É uma representação ideológica, são signos, símbolos, cartões postais, que mostram uma parte da cidade, uma parte que está muito longe de representar a cidade como um todo. Quando eu falo em combater o analfabetismo urbanístico, é combater junto até às instituições brasileiras. Junto às Assembleias Legislativas, às Câmaras Municipais, e principalmente junto à mídia, que trabalha com aquela representação que é a do mercado imobiliário. E grande parte da nossa população está fora do mercado, ela não ocupa ilegalmente terras porque quer. É porque não tem alternativas. Você tem áreas de proteção ambiental ocupadas de forma irregular e ilegal por uma população pobre que é constrangida a ocupar por falta de alternativas. É muito importante que se diga isso. No capitalismo central, Europa, Estados Unidos, você não tem tanta exclusão em relação ao mercado imobiliário como você tem no Brasil. Aqui ele não chega a 50% da população. Metade da população que queira comprar uma casa própria não consegue ter acesso no mercado formal, residencial, e nem tem acesso às políticas públicas. Quais são as formas de você ter acesso à moradia? Ou é pelo mercado formal ou é por políticas públicas. E nenhum dos dois consegue chegar até a maior parte da população brasileira. E isso faz parte de um conhecimento que fica escondido, que é oculto. E há a dimensão da população que ocupa áreas de proteção ambiental, de proteção permanente, beira de córrego, beira de rios. Aqui em Florianópolis, sei que dunas e áreas de proteção ambiental não são ocupadas apenas por populações de baixa renda. Muitos poderosos também fazem isso. Precisamos conhecer essa realidade. Na hora que a gente conhece, tem que tentar resolver, fazer com que a lei seja cumprida, para termos onde assentar a população pobre em áreas ambientalmente sustentáveis.

Veja o vídeo de Erminia Maricato sobre o analfabetismo urbanístico em https://www.youtube.com/watch?v=9R4S6ZaDniU


A distribuição de renda não basta para se ter igualdade urbana. Como é esse paradoxo?
EM – Temos insistido nisso porque muita gente, em especial a maior parte dos economistas democráticos, acha que a distribuição de renda é suficiente para construirmos um país mais justo e igualitário. Mas eu tenho mostrado que nós tivemos até 2015 um aumento real do salário mínimo e esse aumento real não foi suficiente para cobrir o aumento dos custos de transporte e de aluguel ou o custo da moradia. Com o boom imobiliário e o boom automobilístico no Brasil, de 2009 a 2014, especialmente, foram construídas – pelo menos contratadas - 4 milhões de moradias do Minha Casa Minha Vida, e ao mesmo tempo nós tivemos um aumento acima da inflação do custo de vida, dos aluguéis, do preço da moradia e dos transportes. Então isso quer dizer que não basta distribuir renda, precisa distribuir cidade também.

O que é o BRCidades?
EM – Várias forças políticas, democráticas do país, estão repensando o Brasil, lançando projetos, porque é evidente que nós estamos em um momento de transição, nós findamos um ciclo democrático e estamos lutando pelo início de outro. É muito importante isso, que a luta pela redemocratização do Brasil já começou. Então nós temos planos, o Plano Brasil Nação, O Brasil que o Povo Quer, o plano da Frente Brasil Popular, o plano da Frente Povo Sem Medo. Nós estamos no contexto da Frente Brasil Popular trabalhando o projeto para as cidades do Brasil. Nós estamos divulgando e disseminando a ideia de iniciativas para repensar as cidades brasileiras. O país tem uma diversidade muito grande, não só dentro de cada região como entre regiões, e isso precisa ser pensado territorialmente, localmente. Nós temos um número de profissionais e de estudantes interessados, movimentos sociais, universidades que estão interessadas na proposta e já começaram a trabalhar nela. São várias iniciativas e não apenas de nossa parte, insisto nisso. A gente gostaria de caminhar, depois de um certo momento, para uma unidade de sistematização dessas propostas todas.  

Paolo Colosso, Maria Inês Sugai, professora na UFSC, e Erminia Maricato

Lançamento ocorreu no Plenarinho da Assembleia Legislativa



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