terça-feira, 5 de abril de 2016

O novo movimento indígena brasileiro


























Por Elaine Tavares

Talvez muita gente ainda não tenha percebido, mas há uma mudança gigantesca no processo de luta dos povos originários do Brasil. A primeira delas é a vertiginosa desvinculação da igreja, que, de certa forma, sempre foi a mais importante presença no processo. Num primeiro momento, como opressora número um,  ajudando os portugueses no massacre aos povos novos. Depois, com a ação dos jesuítas nas famosas missões, houve uma mudança no trato e o objetivo era evangelizar, respeitando alguns aspectos culturais e a vida. Mais tarde, já no século XX, atuando como parceira no trabalho de manutenção da cultura e divulgação das denúncias necessária através do Conselho Indigenista Missionário.

Também houve um momento na história do século XX em que uma série de Organizações Não Governamentais, brasileiras e estrangeiras, se uniram ao trabalho que já vinha sendo feito pelo CIMI e passaram a atuar no processo de organização das comunidades para que a cultura fosse preservada e as terras demarcadas. Coisas boas e coisas ruins assomaram nesse período e foi um lento aprendizado para os povos originários.

Mas, desde há algum tempo houve uma viragem. A caminhada em comunhão com as igrejas e as ONGs proporcionaram muitos saberes sobre como lidar e viver no mundo dos não-índios. E nesse caminhar, os indígenas foram descobrindo que já tinham todas as condições de atuarem por eles mesmos. Não precisavam de mediações. Parceiros na luta sim, mas não mais de mediações. E, assim, do seio dos povos ainda existentes, foi brotando outra vez a velha forma de organização da vida, que estivera sempre na memória. Era o tempo de criarem entidades organizadas e dirigidas por eles mesmos. E assim, nos anos 80 do século XX começou – devagar – essa mudança de rumo. Associações, Coordenações, Confederação. Coisa já conhecida desde antes da chegada de Cabral.

Assim, os povos indígenas passaram a atuar no campo da luta por direitos e território, em instituições constituídas à maneira não-índia, capaz de dialogar e compreender o intrincado mundo dos brancos, com suas leis e o falso estado de direito. Se era necessário o combate no campo da lei, para ele deveriam marchar com armas capazes de serem eficazes também nesse mundo. Hoje, são muitas as associações que organizam as lutas, formação e debates sobre a realidade indígena em todo o país.

Essas entidades organizativas dos povos indígenas caminham em articulação com a organização original, histórica e tradicional dos que ainda vivem nas aldeias. É um bem elaborado bailado de ligações entre o secreto que sobrevive na aldeia, e as batalhas que precisam ser travadas no mundo não-índio. Ou seja, as populações originárias estão avançando no seu processo organizativo de maneira autônoma e soberana, com uma forma de organizar que é bastante singular, única, totalmente articulada entre a tradição, a cosmologia e realidade de viver num mundo dominado pelo não-índio.

Toda essa mudança no modo de ser dos povos indígenas na relação com o Estado aparece em situações bastante específicas e cada vez mais. Uma delas se explicitou bem aqui, na grande Florianópolis, quando a comissão de notáveis brancos da CPI da Funai veio entrevistar as lideranças da Aldeia Itaty, do Morro dos Cavalos. Segundo os deputados que solicitaram a CPI, os indígenas que ali vivem, não estavam naquele lugar em outubro de 1998, logo, não teriam direito de ter aquelas terras demarcadas.

Na audiência, o cacique Guarani respondeu a todas as perguntas na sua língua original. Já basta de desrespeito com as gentes indígenas. Já basta do tempo em que se torturava um homem ou uma mulher originária para falar uma língua que não era conhecida. É tempo de os não-índios que quiserem realmente estabelecer um diálogo com os povos indígenas saberem que eles falam uma língua específica e que ela precisa ser conhecida e respeitada. Essas línguas estão vivas e são o sustentáculo da cultura de cada povo. O pessoal da CPI saiu incomodado, o que mostra que não há mesmo nenhuma boa vontade em ouvir e compreender a realidade indígena. As pessoas já vêm com ideias pré-concebidas. No caso do Morro dos Cavalos, os Guarani estavam ali sim, antes de outubro de 1988. Mas, se não estivessem , isso só teria acontecido por conta da expulsão promovida pela invasão de colonos. Isso é história comprovada. Logo, aquela terra é deles por direito.

Outro caso, bem pior, aconteceu no Mato Grosso do Sul, onde numa também sessão da CPI da Funai  - que é nacional – a liderança Terena, Paulinho Silva, também optou por fazer o depoimento na sua língua original, já que não tinha um bom domínio do português, e isso poderia fazer com que ele não conseguisse expressar o que precisava ser dito. Foi um alvoroço. Os deputados e outros integrantes da mesa se colocaram contrários a esse direito que é assegurado ao indígena.  E tanto que colocaram um vídeo no qual Paulinho fala em português e ainda abriram uma queixa crime contra ele. Ora, ainda que ele saiba falar português, essa não é sua língua mátria, e é nela que ele consegue tornar mais claro o que tem a dizer. Ele tem o direito de falar na sua língua. Mas, não. Agora, há um boletim de ocorrência contra o Terena, ele vai ter de prestar esclarecimentos à Justiça e pode ser condenado por crime. O mundo de ponta cabeça. A vítima passando a criminoso em um toque de mágica. E tudo isso num estado onde sistematicamente os fazendeiros matam índios, estupram mulheres, e usam jagunços para aterrorizar as aldeias, sem que nada lhes aconteça.

Mas, para os povos originários, essa é uma batalha antiga. Muitas fases já passaram, desde a tutela até a autonomia que vão construindo aos trancos e barrancos. Saíram de uma linha de quase extermínio, quando chegaram a pouco menos de 150 mil pessoas, para quase um milhão de almas que hoje se expressam, se organizam e crescem. O movimento indígena não é mais o mesmo. Ele se fortalece e se revigora. Isso não significa que as coisas vão mudar de uma hora para outra. Isso tudo é um processo. Significa que há mudanças substanciais, que há autonomia, que há organização soberana, que há orgulho da língua, que há conhecimento de direitos.

É chegada a hora de as escolas começarem a ensinar também o Guarani, Tupi, Terena, Apinajé, Xokleng, Kaigang e tantas outras línguas que conformam as mais de 300 comunidades indígenas que vivem no Brasil. Porque os povos estão orgulhosamente falando suas línguas e lutando pelo seu território, que, na cosmovisão originária, é o espaço pleno da cultura – não apenas terra, mas universo totalizante do seu modo de ser.

Os indígenas brasileiros estão em plena caminhada de transformação. E, como já anunciaram os parentes de Chiapas, no distante 1994: “Já basta! Nunca mais o mundo sem a gente”. Assim é. A luta pelo território continua e cresce.

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