quarta-feira, 6 de abril de 2016

Na busca de vida melhor
















Luta e alegria - cotidiano dos haitianos em Santa Catarina

Por Marcela Cornelli

Cada vez mais haitianos vêm ao Brasil. Em Santa Catarina, em julho do ano passado, estima-se que seriam cerca de oito mil haitianos vivendo no Estado. Eles vêm em busca do sonho do emprego e de poder enviar dinheiro aos seus familiares que ficaram distantes. Estudar em uma universidade pública também é um dos anseios dos mais jovens. Observa-se que, geralmente, pelo menos na capital do Estado, Florianópolis, esses imigrantes trabalham em postos de gasolinas, na construção civil, na limpeza de restaurantes, na rede hoteleira, em supermercados e as mulheres como diaristas. Em geral, em serviços prestados por empresas terceirizadas.

Com a recessão no país, desemprego, inflação crescente, somando aos baixos salários, poucos conseguem enviar dinheiro à família que ficou no país de origem.

“Os sonhos dividem-se em ter um emprego e poder estudar” é o que disse à reportagem, Paul André, um dos coordenadores do Movimento de Haitianos em Santa Catarina.

Paul está em Florianópolis há cinco anos e formou-se no curso de Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina. “Não há diferenciação. Não tenho privilégios por ter estudado. As dificuldades são as mesmas. Mesmo no meio acadêmico há dificuldades como a falta de preparo dos professores para receber os alunos vindos de outros países e o preconceito”, disse ele, quando questiono se tem mais facilidades de adaptação e convivência aqui no Sul do País, do que os que não têm escolaridade. Paul acompanhou desde o início a chegada dos haitianos no Estado, quando ônibus foram enviados pelo governo federal do Acre à Santa Catarina. Os haitianos foram abrigados em um ginásio de esportes, o Capoeirão, na parte continental de Florianópolis. Alguns tinham contatos com parentes e/ou conhecidos que já viviam na cidade. Ali mesmo no abrigo, o Estado, através da Secretaria de Assistência Social, fazia as documentações necessárias e encaminhava-os para vagas de empregos. No entanto, muitos não tinham para onde ir.

Para amenizar a dores de quem está longe do seu país e ajudar até que eles possam conseguir trabalho, Angela Dalri, que coordena o Projeto Pixurum, acolhe os haitianos em uma casa no bairro Carvoeira, em Florianópolis, próximo à Universidade Federal. “Um dos maiores desafios é o idioma”, diz Ângela.

O Projeto Pixurum existe desde fevereiro de 2008 com a finalidade de acolher moradores de rua. “Tentamos resolver questões mais imediatas como alimentar, servimos sopa para os moradores de rua, verificamos cada situação, ligamos para as famílias e ajudamos a encaminhar para tratamentos médicos, quando necessário. No caso dos haitianos a situação é diferente. Eles usam o espaço até conseguirem algum lugar para morar. Os que trabalham pagam um aluguel simbólico para ajudar a manter a casa e a alimentação de quem não trabalha. Ajudamos a confeccionar os currículos e aos poucos eles aprendem o básico do idioma para conseguir emprego. Já recebemos também imigrantes do Timor Leste. O aprendizado é mutuo. Pixurum quer dizer: O bem que fazemos nos faz bem também”.

Ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e militante de longa data, Ângela conta que alguns haitianos conseguem receber benefícios como bolsa família, cartão de ônibus e atendimento na rede de saúde pública. Porém, a inserção no mercado de trabalho, principalmente pela dificuldade com o idioma, é o mais difícil.

Outro ponto levantado por Ângela na convivência com os haitianos é a falta de opção de lazer e cultura. “São um povo que gosta muito de dançar, de socializar. Mas, acabam ou por medo da falta de segurança e de serem discriminados, ou por não terem condições econômicas, limitando-se a ida ao trabalho e à igreja”.

Segurança e preconceito preocupam

“Desde o ocorrido com a morte do haitiano em Navegantes, no ano passado, os haitianos que moram na casa temem participar das programações culturais na cidade pela falta de segurança”, fala Ângela. Ela diz ainda que a maioria dos haitianos que vive na casa têm entre 18 a 45 anos. “O desejo deles em trazer a família é grande”. Ângela diz que não abandonou as lutas maiores por uma sociedade mais justa e igualitária, mas que agora se dedica a ajudar no que eles precisam de mais imediato. Para isso, está organizando uma campanha de arrecadação de feijão, base da comida dos haitianos, para a casa. Quem quiser, pode ajudar.

Mulher forte, que deixou o país de origem, marido e filhos e veio para o Brasil, Maria* veio para cuidar da enteada e também trabalhar. Ela trabalha como diarista e diz que pretende ter todos os dias da semana ocupados para juntar dinheiro. O sonho é trazer o marido e os demais filhos que ficaram lá. Maria não compreende bem o português. Em poucas palavras e com a ajuda da enteada foi formulando o depoimento dela: “Sinto saudades do Haiti onde eu tinha e cuidava da minha casa. Aqui trabalho para outras famílias. Gosto de Florianópolis, porque é uma cidade grande e bonita. Vim em busca de oportunidades”.  Pediu para não ser identificada na matéria porque não quer que a família no Haiti interprete de maneira errada que ela está vivendo em condições precárias e/ou de dificuldades.

A enteada, Rosa*, que também pediu para não ser identificada, diz ter vindo em busca de um único sonho: “Eu quero fazer medicina”. Ela diz que sente saudades do pai e dos irmãos. “Meu pai fica muito preocupado comigo aqui”. A família tem planos de se reunir em breve no Brasil.

“Não somos vazios”

Choute Vinsky, que participa junto com Paul do Movimento de Haitianos em Santa Catarina, diz ser agradecido às oportunidades que teve desde que chegou, podendo estudar e aprender o português em aulas que cursou na cidade de Blumenau. Diz também estar preocupado com atos de violência contra haitianos no país e defende que a integração cultural pode ser a saída para a quebra de preconceito e o melhor viver. Ele é responsável pelo time de futebol “Haiti Santa Catarina Futebol Clube”. “Um dia queremos poder jogar no campeonato estadual”, confessa, esperançoso, Choute.

“Não chegamos aqui vazios. Não somos um povo vazio. Temos muita cultura para compartilhar”, diz Paul. Ele explica que o movimento vem buscando dialogar com autoridades e governos, municipais e estadual, para garantir acolhimento, vida digna e oportunidades para os haitianos que buscam o Brasil para viver. No dia 24 de maio do ano passado, foi realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado para debater a questão dos imigrantes em Santa Catarina. Participaram haitianos e senegaleses que vivem aqui. Para Paul, umas das maiores conquistas da audiência foi o encaminhamento para a criação do Conselho Estadual de Apoio ao Imigrante. Em 6 de maio deste ano, será organizado um Fórum Estadual de haitianos, em Florianópolis. “Queremos ter um cadastro de todos os haitianos no Estado, saber como vivem, se estão recebendo com dignidade pelos trabalhos prestados, ajudá-los na busca de emprego e educação”, diz Paul.

Em dívida com estes irmãos

É preciso lembrar que o Brasil tem uma dívida com este País e com o povo haitiano. Sob o comando da ONU (leia-se Estados Unidos) o Brasil encabeça, através da Minustah, o exército invasor no Haiti. Estudos apontam que além do terremoto que atingiu o país em 2010 e deixou ainda mais precárias as condições de vida da população, a invasão militar da ONU também é fato que contribui para a saída dos haitianos do país e a vinda para o Brasil. No artigo “O Haiti é Aqui: Sub Imperialismo Brasileiro e Imigrantes Haitianos em Santa Catarina”, o pesquisador e doutorando em Demografia da Unicamp, Luís Felipe Aires Magalhães, busca explicar o recente fluxo migratório de haitianos no Estado de Santa Catarina.

Os haitianos têm uma história que nos inspira. Em 1804, se tornou a primeira nação independente da América Latina e do Caribe. Luís Felipe aponta vários aspectos históricos que precisam ser levados em conta neste processo migratório: “Uma das consequências impostas pelo imperialismo à Revolução de Independência Negra no Haiti foi o embargo econômico e o isolamento comercial. Não devemos entender com isto que o Haiti foi excluído do sistema capitalista mundial. Pelo contrário, ele aprofundou sua vinculação a ele, de forma ainda mais subordinada”, explica. E vai além: “o Haiti é historicamente objeto de presença econômica e militar estrangeira (CASTOR, 2008). Esta presença estrangeira já foi de natureza colonial, no século XVIII, e de natureza imperialista, durante o controle político e militar dos Estados Unidos no século XX. Atualmente, neste início de século XXI, com a presença brasileira na coordenação de forças militares de estabilização (Minustah), ela é de natureza subimperialista”. É neste contexto que recebemos no Brasil estes irmãos caribenhos e latino americanos. Nosso respeito e convivência é fundamental para o intercambio destas duas culturas.

 * Os nomes de Maria e Rosa são fictícios, a pedido das entrevistadas.

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