quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Serra inteira, brasileira, do Mar

Míriam Santini de Abreu

A gente nunca sabe de onde nos chega um amor. Como ele se alastra pela memória e se enraíza tão fundo que parece fluir pelo corpo a cada pulsação. A Serra do Mar é assim. Um pulsar mineral, vegetal, cuja origem em mim se perdeu num emaranhado de impressões, lembranças, invencionices. Elas se tornam concretas em diferentes coordenadas geográficas onde a Serra se fez paisagem e vivência. Latitudes, longitudes e altitudes que são Serras no meu corpo.

Ubatuba, São Paulo
23º 21´ 20.94” S - 45º 07´59.62”O – Elevação: 971 m

É tortuosa a descida que, pela rodovia Osvaldo Cruz, liga o planalto ao litoral paulista. A imagem de satélite mostra a estrada cheia de curvas, fino risco de asfalto que corta o Parque Estadual da Serra do Mar. Ao pé da Serra está Ubatuba, onde, no século 16, se passou parte da curiosa história de um alemão chamado Hans Staden. Eu a li num relato escrito por ele e publicado no Brasil com o título “Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Devoradores de Homens, Encontrados no Novo Mundo, A América“.
Staden veio para o Brasil duas vezes e, na segunda, ficou prisioneiro dos indios tupinambás. A narrativa das artimanhas que ele usa para evitar ser devorado são... saborosas! O alemão, que fez um autêntico trabalho de repórter ao contar o modo de vida dos índios, consegue escapar numa troca com tripulantes de um navio francês na atual Niterói. 
Com base no livro, escrito depois na Alemanha, conclui-se que Staden passou por Ubatuba quando os tupinambás levaram-no em uma expedição de guerra de 38 barcos. Ali, segundo o relato, eles acamparam e pegaram muitos peixes.
Num fevereiro chuvoso em que caminhei naquelas praias recortadas, à frente o Atlântico, atrás a Serra, eu era canoa, índio, peixe. Do que vi, do que me lembro, a prisioneira daquela Serra era eu.

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A Serra do Mar vai do norte de Santa Catarina ao Rio de Janeiro, onde encontra a Serra da Mantiqueira, que se prolonga até o Espírito Santo. O granito que a forma tem mais de 600 milhões de anos. No período mesozóico, a região onde é a Serra do Mar foi um grande deserto.

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Joinville, Santa Catarina
26º 15´ 34.80” S - 49º 00´21.82”O – Elevação: 973 m

Joinville, cidade esparramada, de um lado o ventre líquido da Baia da Babitonga, de outro as escarpas da Serra do Mar, que vi pela primeira vez naquele ano de 1995.  Outra mulher, 145 anos antes, em 1850, também aportou ali. Era Julie Engell, alemã, como Hans Staden, e com uma história igualmente fascinante, que descobri no livro “Era uma vez um simples caminho... Fragmentos da história de Joinville”, da historiadora Elly Herkenhoff.
O pouco que se sabia de Julie Engell, recuperado por Elly, foi contado por um dos primeiros cronistas de Joinville, o oficial do exército Theodor Rodowicz-Oswiecmsky, em um livro editado na Alemanha em 1853. A história se liga ao início da colonização do mais populoso município catarinense, na época chamado Colônia Dona Francisca. Em 1850 esteve ali o engenheiro Hermann Guenther, com a atribuição de fixar o núcleo da Colônia e demarcar os lotes de terra para receber os primeiros colonos.
Rodowicz conta que Hermann Guenther chegou ao Rio de Janeiro em 1849. Antes de embarcar rumo ao norte catarinense, o engenheiro solicitou, a um funcionário da firma que o contratara, um terno para vestir um “pobre homem” que desejava levar como servente. Esse homem na verdade era Julie Engell! Segundo Rodowicz, Julie – que ele classifica de “heroína de barricadas” – viajara para a Austrália e, no Rio, já havia “perdido toda a cotação” por causa de sua ligação com Guenther.
Atribui-se a Julie a autoria dos desenhos de uma supostamente próspera colônia que foram publicados em jornais da Alemanha. Por causa deles, diz Rodowicz, muitos decidiram tentar a sorte na futura Joinville. Viram, ao chegar, apenas a Serra e a densa floresta.
A historiadora Elly Herkenhoff recuperou um outro trabalho que cita Julie Engell. Através dele ficamos sabendo que ela participou – como pioneira do movimento feminista – dos acontecimentos políticos de 1848 em Berlim, e teve que abandonar a Alemanha. Elly Herkenhoff lembra que naquele episódio a feminista Luise Otto-Peters lançou seu programa de ação, reclamando para a mulher o direito de se instruir em diversas profissões. Depois que voltou ao Rio com Hermann Guenther, Julie atuou como educadora em um instituto em Limeira, São Paulo. Ainda voltou a Berlim e faleceu na Suíça.
Essa era a mulher que, no discurso de Rodowicz, era “heroína de barricadas”, de “cotação perdida” por causa da ligação com o engenheiro e autora de desenhos imaginosos.

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Salto do Cubatão, Monte Crista e Castelo dos Bugres. Endereço: Serra do Mar em Joinville.
O primeiro, uma queda de água de 300 metros de altura, há alguns anos ameaçada pela construção de uma usina hidrelétrica;
no segundo, dizem as lendas, os jesuítas teriam escondido imensos tesouros;
no terceiro, conta um poema anônimo publicado em 1896 num antigo jornal de Joinville, com base em uma saga transmitida pelos indígenas, está preso um cavalo branco à espera de seu senhor.
Visitei esses três lugares. Ali, com em toda a Serra, inscreve-se uma saber geológico, geográfico, de fauna, de flora, há séculos um pisar de gente e de bicho. E eu, como Julie Engell, desenho essa paisagem com olhos de quem ali vê, cristalizada, toda a memória humana.
Eu, na Serra do Mar, sou negra, índia, tropeira, caboclinha. Nas madrugadas de lua cheia, galopo de um cume a outro, de Santa Catarina ao Espírito Santo, no dorso de um cavalo campeiro mágico.
Num filme, “O Paciente Inglês”, a personagem diz que os verdadeiros mapas são os nossos corpos. O meu, de norte a sul, é um granito coberto de mata, úmido de águas oceânicas, onde às vezes sopra areia daquele antigo deserto. Iluminam-me as cidades, e também me escurecem. Na noite do tempo, eu e a minha Serra nos dobraremos de vez ao Atlântico.

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