segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Meninos por um fio


Por Raquel Moysés - jornalista

Quem sabe a vida do menino Erick poderia ter sido salva se o setor de queimados do Hospital Infantil de Joinville não tivesse sido fechado em 2011. Quem sabe, o garotinho não poderia ter sido transferido imediatamente de Lages, no planalto serrano, para a maior cidade catarinense, no norte, sem ter de esperar uma semana por uma  vaga  em outro Estado.

Mas por que será que nos dias em que tanto se falou da situação desesperadora do menino de quatro anos que sofria, com  70% do corpo queimado, muito pouco se disse e menos ainda se explicou sobre o fechamento, em Joinville,  dos dez leitos antes destinados aos pequeninos que desgraçadamente se queimassem?

O menino Erick Pereira Melo, filho do pedreiro Michael e da vendedora Ariana, morreu no dia 30 de outubro de 2013, enquanto a equipe médica do Hospital Seara do Bem, de Lages, cuidava dele e aguardava a melhora de seu estado clínico para finalmente transferi-lo a um hospital de Porto Alegre. Erick se queimara na tarde de 23 de outubro, enquanto brincava com fogo e álcool com um amiguinho de sete anos, no Bairro Jardim Celina,  na cidade serrana.

A história desesperadora do menino e sua família mostra que há variáveis não controláveis, dependendo da gravidade dos casos e da incerteza de se dispor, no tempo necessário, dos setores especializados e dos leitos exigidos para o tratamento da saúde de seres humanos.

A morte de Erick poderia ter ocorrido de qualquer forma, mesmo se não tivesse sido desativada a ala de queimados do Hospital Materno Infantil Dr. Jeser Amarante Faria, de Joinville.   A sua vida talvez não pudesse ter sido salva ainda que houvesse, no mesmo dia do acidente,  um leito disponível  no Hospital Infantil de Florianópolis.  Talvez também não tivesse sido possível salvá-lo se ele fosse transferido para o hospital da capital gaúcha, quase uma semana depois da fatalidade.  
  
Mas, como estamos sempre no terreno das hipóteses, permanece aberta uma pergunta, que não quer calar: – E se não fosse assim? E se apenas uma entre as possibilidades acenadas pudesse permitir a salvação do menininho que se queimou durante uma infeliz brincadeira infantil?  Quantos meninos ainda terão que morrer para que sejam respondidas perguntas que não nos deveriam dar sossego?

Em 2011, quando a ala de queimados  do Hospital Infantil de Joinville foi fechada, os meios de comunicação deram discreta cobertura ao acontecimento, denunciado pelo Fórum Catarinense em Defesa do SUS e contra a Privatização da Saúde. Na ocasião, o deputado Amauri Soares, que faz parte da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, ressaltou que o Hospital Materno Infantil de Joinville é administrado por uma Organização Social (OS), de Curitiba, que venceu a licitação aberta, em 2008,  pelo  governo estadual,  para terceirizar a gestão do hospital público catarinense. Soares enfatizou que o tratamento de queimados é longo e doloroso, e que isso talvez pudesse contrariar a expectativa da  OS com a execução de serviços que tragam retorno rápido e justifiquem maiores investimentos públicos no hospital.  

Com a desativação do setor no hospital do norte catarinense, a única alternativa para atendimento pediátrico especializado em queimados passou a ser a do Hospital Joana de Gusmão, de Florianópolis. E este hospital, o único infantil da capital, então contava  com apenas dez leitos de UTI, (no momento reduzidos a oito, por causa da reforma em andamento),     para dar conta de todas as regiões de Santa Catarina.

A justificativa para fechar a ala de queimados, dada pela direção da Organização Social Hospital Nossa Senhora das Graças, que desde 1º de setembro de 2008 responde pela gestão do Hospital Infantil de Joinville,  é de que  a demanda atendida não justificava o  repasse de  recursos do Ministério da Saúde e não seria mantida pelo governo do Estado.  Em seis meses, segundo informaram, haviam sido registrados 25 atendimentos, uma média de um paciente por semana. E taxa de ocupação tão baixa não dava o “retorno” esperado.   

A direção da OS somente só não explicou o que significava “retorno”.  Serviço de saúde tem que dar lucro?  E se fosse apenas uma criança a salvar - como o menino Erick - ainda assim não estaria justificada a existência do setor de queimados? Salvar uma vida é o mesmo que salvar o mundo inteiro, diz o Talmude.

Através de sua assessoria de imprensa, a direção do hospital afirmou, na ocasião do fechamento do setor, que nenhum profissional seria demitido e que a população não seria prejudicada.  A “única” diferença é que os casos mais graves de queimadura, de acordo com o quadro clínico e a disponibilidade de vagas, seriam atendidos no Joana de Gusmão.  O hospital infantil da capital, segundo avaliou-se em 2011, conseguiria atender toda a demanda de Santa Catarina. Já os dez leitos reservados para os queimados, em Joinvile, seriam  destinado a outros serviços.

Serviços que dariam um maior retorno? Mais lucrativos?
Conforme foi divulgado, a organização social paranaense que administra o hospital há cinco anos estaria avaliando a possibilidade de destinar aquele espaço a demandas “mais urgentes”. Como, por exemplo, uma ala psiquiátrica infanto-juvenil, que seria a primeira em Santa Catarina destinada especificamente a pacientes com até 16 anos.

A criação desse setor para crianças e adolescentes havia sido cobrada do governo de Santa Catarina, através de uma ação civil pública, pela 4ª Promotoria de Justiça de Joinville.  A obra, no entanto, em 2013, ainda faz parte da lista de promessas do governo estadual para investimentos em saúde. Mas a criação de um setor psiquiátrico infanto-juvenil em Joinville, segundo a  promotoria, fazia parte do  cronograma de serviços do contrato firmado entre o Estado e a OS Hospital Nossa Senhora das Graças,  e  isso  deveria ter sido cumprido em abril de 2009.

O que pouca gente sabe é que tais acontecimentos trágicos têm relação direta com a política de privatização dos serviços públicos de saúde, de vento em popa no Brasil. A apropriação desses serviços pelo sistema privado vem acontecendo em Santa Catarina e em todo o país, com o respaldo de uma bem tramada rede de legislações, que facilitam  a entrega de bens públicos  para atender a interesses de grupos particulares.

Através de leis e normativas, empresas e fundações de direito privado  – mascaradas de Organizações Sociais (OSs), Parcerias Público-Privadas (PPPs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) – se apoderam, com finalidade de lucrar, de fundos estatais (o famoso dinheiro público),  arrecadados através da cobrança de altos impostos pagos pela população.

Os nomes simpáticos até podem ocultar a natureza dessas organizações, mas seus estatutos as escancaram. Elas são, na verdade, empresas privadas, que auferem lucros, enquanto se anunciam como sendo até de fundo caritativo.  E os que desconhecem  as novas formas de privatização,  dificilmente desconfiariam  de siglas banais, que escondem verdadeiras arapucas de captação “filantrópica” de preciosos bens públicos, como, por exemplo, hospitais e serviços do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Em Santa Catarina, embora haja desde 2007 uma decisão do Ministério Público do Trabalho, transitada em julgado (isto é,  da qual não se pode mais recorrer), proibindo  transferir  hospitais estaduais para Organizações Sociais, o governo catarinense prossegue   a escalada de privatização de serviços essenciais de saúde. Seis unidades já foram terceirizadas, entregues para Organizações Sociais de direito privado, segundo denuncia o SindSaúde-SC. Todas elas de vital importância para a saúde da população: o Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon); o Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc); o Hospital de Araranguá;  parte do Regional e o Hospital Materno Infantil, ambos de Joinville;   o Hospital de São Miguel do Oeste.

Igualmente são alvo dessas novas formas de privatização o Hospital Florianópolis, o Hospital de Ibirama e a parte do Regional de Joinville que ainda resta pública. Nem mesmo o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU-192 se livrou deste destino, tendo sido entregue pelo governo estadual à Organização Social Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM).

No caso do SAMU-192, uma contenda judicial ainda se arrasta em meio a decisões provisórias. Uma liminar, que em agosto de 2012 determinara a suspensão da terceirização do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, foi derrubada por decisão Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o qual deliberou  pela  continuidade da gestão terceirizada até ser julgado, pelo Supremo Tribunal Federal,  o mandado de segurança que ordenou  o retorno da gestão ao governo do Estado.

A gestão da organização social  paulista,  no entanto, não conseguiu evitar a interdição total do prédio do SAMU em Florianópolis. A decisão judicial de interditar a edificação, através de liminar obtida em ação civil pública ajuizada pela 33ª Promotoria de Justiça da Capital, foi tomada para afastar o risco de proliferação de doença e contaminação da população em razão da precariedade das instalações.  

Como se vê, nada confirma a propalada eficiência das festejadas Organizações Sociais (OS´s),  apresentadas como a salvação da saúde pública, assim como agora se quer impor nacionalmente às universidades federais  a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) como a redenção dos Hospitais Universitários (Hus e HCs).

Empresas de direito privado, que recebem polpudas somas de dinheiro público, com autonomia total para decidir sobre vagas, compra de materiais, aplicações no mercado financeiro, contratação de trabalhadores pela CLT, etc,  essas organizações, apresentadas como tábuas de salvação,  abrem  as portas para “todas as formas de clientelismos possíveis”. É o que denuncia a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, movimento que  reúne os fóruns estaduais em defesa do SUS.

Em São Paulo, segundo divulgou a Frente, um levantamento do Tribunal de Contas do Estado (TCE) provou que um mesmo cateter que era comprado através de licitação por R$ 0,55, custava para uma Organização Social  R$ 2,55. Outro estudo do TCE também demostrou que em estabelecimentos hospitalares administrados por  OS's,  em   São Paulo,  a mortalidade geral é maior e o número de funcionários por leito  menor do que nos hospitais administrados  pelo Estado.

Dados como os citados comprovam o quanto é escandaloso investir  recursos públicos no setor privado que trabalha com a saúde humana na lógica da mercadoria. Assim como é vergonhoso que gestores de saúde fechem setores essenciais “não lucrativos”, ferindo o direito humano à vida e ao cuidado na aflitiva hora da doença.  

A morte de um garoto de quatro anos, lá na serra catarinense, tem o poder de acender um sinal de alerta em cada um de nós. Já não basta dizer palavras de ordem em manifestações e guardar silêncio na vida cotidiana. “Morreu um menininho! Podia ser meu filho!” E, afinal, não é mesmo? Erick não é um filho da humanidade?
“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte...
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora...
Quem grita vive contigo!”
(“Menino”, de Milton Nascimento)

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