domingo, 28 de agosto de 2011

O Jardim de Salomé

Na brancura de uma folha de papel (que é um território de sedução), planta-se a frase: “O sicômoro está iracundo, assaltado por legiões de carunchos”.
Aqui, do meu sobrado, contemplo uma noite de casas adormecidas, na ribanceira que dá para a restinga onde, entre juncos, há os gritos estagnados de coriáceas iguanas que, como se sabe, costumam devorar os que não sonham e os que pensam demais. Lembro-me do estabelecimento de banho turco, com um lavatório de torneiras barrocas a imitar peixes, torneiras que deixam escapar soluços de água.
Os navios de Le Corbusier: os ímãs de Gauss: as lentes de Espinosa: nada disso sacia minha dúvida. A música, sim, me sacia: música que reverencia aquilo que, em nós, não é nem a sombra de um menino.
Também me recordo que, numa daquelas casas na ribanceira, ainda há o ar nos pulmões da coribante Salomé – a que eu, mesmo vendo, nunca vi – Salomé selvagem, mas tão clara e alba.
Eu olho, durante horas, o estuário deserto de pesqueiros, e penso o que a devastação do corpo, a loucura, podem fazer a um homem como eu. Eu aceito tudo menos ser uma água tão tranquila como o pó das bibliotecas: lapidem esse aquam fontis vivi: a pedra é uma fonte de água viva.
Em meu sobrado, o tanque de lavar com chuva dentro.
Sob a árvore daquele pensamento descanso meu corpo noturno, logo acordo abraçado a uma âncora oxidada, a soprar com força no escuro. O homem se esquece de que é um morto que conversa com os mortos. Entro mais silencioso no casarão onde me aguarda a sombra de Salomé. É um casarão com as portas apodrecidas, reduzido às janelas ou às argolas, com telhado enegrecido por agáricos: resta no casarão a colunata de um átrio e uma cornija partida pelas raízes de uma figueira: os ladrilhos rachados e os ouros velhos dos oromos: nos cantos escuros, cactos, e algumas correntes de ar.
Para refrescar a memória, num dos jardins do casarão o tanque limoso e as carpas: algo soa próximo e longínquo: diante de mim, Salomé clama um diapasão de coéfora, e solta sua cabeleira extensa como véus negros. E, no entanto, sinto-me envolvido por ela, como se estar nesse casarão ao lado dela, tudo isso despertasse em mim obscuros ritos marinhos.
A solidão conosco mesmos não tem fim: ela apenas começou. Quem brinca esconde a morte interior. Quem brinca é criança. Deus é velho e morre. É impressionante que o jardim de Salomé fique tão perto do salão respeitável e misterioso das ideias: devido a sua proximidade com o paraíso, esvoçam no jardim de Salomé as folhas do limoeiro.
Quando abraço a essência, parece que o mundo fica frio e vazio. A alma tem seu mundo que lhe é próprio: nele só entra a essência, que não está nas coisas, nas pessoas, nos pensamentos.
Se eu saciar minha sede de água viva em Deus, me tornarei uma fonte. Devo ser salvo para a solidão em mim. Quem vive sente o passar para o outro lado, que é imortal. Minha alma me conduz ao deserto, ao deserto de minha própria essência. Não pensava que a essência em mim era um deserto seco, quente, poeirento e sem um grão de chuva.
Escuto as palavras de Jesus: “Eu vos dei o poder de pisar em cobras e escorpiões, e sobre toda força do inimigo. Nada vos poderá fazer mal”.
Escuto as palavras de Rumi: “Passado e futuro ocultam Deus de nossa vista: ponha fogo em ambos”.
Escuto as palavras de João Cabral de Melo Neto: “Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída”.
Devo abrir, agora, o jardim encantado do deserto. Os deuses invejam a perfeição do ser humano, pois o perfeito não precisa dos deuses. O inferno é quando sei que o sério é ridículo, que todo delicado é bruto, que todo bom é mau, que todo alto é baixo. Deus nasce de uma ambiguidade escura e sobe para uma ambiguidade luminosa. Que o pensador receba seu prazer. Que o sentimental receba seu próprio pensar. Se ainda quisermos vencer a morte, então temos de avivá-la.
A profundeza é mais forte que nós.
Por isso, levo em minha travessia taças de ouro que transbordam a dulcíssima água da vida. Olho para a profundeza, rezo para a minha profundeza, desperto os mortos. Aprendi que o caminho para a verdade só está aberto para os que não guardam em si sequer o resquício de uma intenção.
Quando colocamos um Deus fora de nós, ele nos arranca deste fora, pois o Deus é mais forte do que nós. Meu medo repleto de saber. Cavo profundas covas e atiro nelas oferendas, a fim de que cheguem ao morto. Penso com o coração bondoso no mal: este é o caminho da subida.
Onde, em mim, o casarão de Salomé mora? Onde eu moro no casarão de Salomé que mora em mim? A viagem conduz através da areia quente, vadeando lentamente, sem objetivo visível de esperança. Por isso evito o lugar da minha alma.
Escuto mais uma vez as palavras de Jesus: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim” – conforme diz a Escritura: “Do seu interior correrão rios de água viva. Se podes? Tudo é possível para quem crê”.
Entrei num matagal de dúvida: sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei: hinübergehen (ir para o além): a alma diz: “Espera”.
O tântrico zero âmago: breu do breu: um tango seráfico: a lesma enfia-se na ânfora pra clarear seu visgo: o céu no futuro: um galeão que doura desliza silencioso: a mata pedregosa: que a chuva nos benza: perfumo a cabeça e lavo o rosto: sou pó de mirra e ao pó de mirra voltarei: então por que devo perder noites de sono?: antes que o pó de mirra me alcance, finjo que sou as linhas de fumaça do incenso em fuga por cima dos objetos desta sala: compreendo que o Deus, que procuro no absoluto, não há de ser encontrado no belo, bom, sério, elevado, humano, nem mesmo no divino absoluto.
A sala da biblioteca do casarão, que recebe uma luz coada pelas frestas das venezianas, é peça vasta e escura, separada do saguão central e do pequeno corredor que deságua no quarto de Salomé cega e nua e também as paredes do quarto são cegas.
Onde existe a força criadora do desejo, ali brota do chão a semente que lhe é própria. Ao deserto pertence a dor. Desde que em alguma outra parte é que vivemos e aqui é só uma nossa experiência de sonho. Se minha força criadora retornar para o lugar da alma, verei como a alma vai reverdcer e como o deserto produzirá frutos maravilhosos.
Tem dias, aqui no casarão, que, para espantar o zumbo das moscas, teço na língua algumas frases com balda de cancioneiro. O futuro já existia nas primeiras imagens. Nunca cheguei a aprender grego, no entanto até hoje gosto de lê-lo, sem entender patavina da letra – mas escutando sua música peremptória e profunda.
Devo ser capaz de perseverar além das coisas, pessoas e pensamentos: ser amigo, não ser escravo. O curioso é como a cega Salomé possui convicções inabaláveis sobre certas situações e indivíduos. Fisicamente ela é uma bela sombra. Levanta duas vezes de noite, agoniada e convulsa, para arrancar da garganta o anzol – tão tonta, tão branca – e pensa: “Vou morrer” – enquanto anda pelo quarto, de um lado para o outro porque a luz, os ruídos da aflição de sua garganta alagam o sono do único peixe no aquário: o sono do peixe, sabe-se, é um descuido da água.
Tu és Salomé, um tigre, o sangue do santo está grudado em tuas mãos. Uma pessoa que passa teme Salomé, pois ela quer sua cabeça, sobretudo quando ele é um santo. Salomé não quer a cabeça que pensa. Uma pessoa que pensa não deve ser um santo, senão cai sua cabeça.
Escuto as palavras de Mia Couto: “As pedras não pediram filhos. É por isso que pedras não morrem”.
Eu lavo a escrita em águas encardidas: se tivermos subido perto da altura do bem e do belo, nosso ruim e feio jazem em tormento extremo: o tormento é tão grande, que a pessoa mal pode respirar.
A blusa da cega Salomé pendurada na cadeira parece oscilar ao ritmo de uma respiração misteriosa: as paredes cegas dilatam devagar: o espelho da cômoda surge da sombra e reflete um ângulo de armário, a pia do banheiro, uma faixa do teto, um gato e a sombra do gato.
Devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente: ação na não-ação: wu wei: triste é viver num lugar onde dormir não difere de morrer.
Se dizes que o lugar da alma não existe, então ele não existe: se dizes que ele existe, ele existe.
Pronuncio ao sabor do acaso algumas palavras estranhas: faces talhadas em granito: turinos: marchetadas com polinésias bizarras: zebruras inscritas na voz e o fundo verdacento do maralto.
Não vou a lugar nenhum e, ai de mim, todo dia acabo chegando lá: tristeza é ver a jarra com gencianas no quarto da cega Salomé: sim, o alegre búzio da surdez marulhando no meu ouvido: observo o que diziam os antigos: “A palavra é ato criador: no princípio era a palavra”.
Quando o deserto começa a dar frutos, vai produzir uma vegetação estranha: tu te julgarás louco e, em certo sentido, serás louco: as palavras que oscilam entre a tolice e o sentido supremo são as mais antigas e as mais verdadeiras: a vida não vem das coisas, mas de nós: tudo o que acontece fora já passou.

Fernando José Karl

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