segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Mar Vermelho dos domingos



Míriam Santini de Abreu


O anoitecer dos sábados tem uma qualidade de mansidão. Os domingos, não. Neles, aquele átimo de tempo em que o dia se entrega à noite, em mim, é como o cajado de Moisés dividindo em dois o Mar Vermelho. Minhas águas internas se agitam, as ondas rebentam furiosas. É apenas por uma estreita faixa de terra seca que espio, lúcida, os meus dois oceanos tentando me engolfar.

Aos que também são Mar Vermelho aos domingos, digo que há reparo para esse desconforto semanal. É esse: não descuidar da passagem; ficar atento ao instante em que o primeiro fio do negrume atravessa a claridade. A noite de domingo não pode nos pegar desprevenidas. É preciso vigiá-la. Interceptar seus efeitos, impedir que sopre seu vento com fúria demasiadada.

Isso eu aprendi na morada da Cardosinha Rubra e na da Filósofa da Pedra. Na morada da primeira, quando a melancolia dos domingos ameaçava arrancar todas as minhas âncoras, eu sentava na varanda e cuidava do oeste, lá onde o sol começava a sumir atrás dos eucaliptos. Aí a noite não me surpreendia.

Mas essa minha estratégia inconsciente eu só percebi na morada da Filósofa da Pedra, onde estive no primeiro domingo de maio. Estirada no sofá, vi a tarde passar, entre conversa e goles de vinho, à minha frente um maciço de granito coberto de musgo, pedra cheia de vasinhos onde se agarram umas samambaias. E foi o maciço aos poucos escurecendo, eu encantada com a sutil mudança na cor do musgo, da textura do granito. E em meio a tal encanto se fez a noite. Eu não percebi a travessia.

Quem não é Mar Vermelho aos domingos nada sabe dessas ventanias. Dirão que se trata de bobagem. Eu os invejo. Mas quem é talvez passe a aguçar o ouvido para perceber o rumor da noite e evitar os sobressaltos mais ferozes. Quanto a mim, digo que bem compreendo aquela outra Míriam, a irmã de Moisés, que celebrou a passagem do Mar Vermelho tocando o seu pandeiro e convidando as outras mulheres a cantar. É que quando a gente enfrenta o medo que a travessia provoca - mar atrás, deserto à frente, não importa – a gente, como o mar e o deserto, não está mais dividida. Está inteira. E se andar mais um pouco encontrará oásis repletos de água boa e tâmaras maduras.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que lindo! Já estou pensando em "criar" o observatório da pedra...srsrsrs .