quinta-feira, 22 de abril de 2010

Família! Família! Vive junto todo dia, nunca perde esta mania... *

*Da música Família – de Arnaldo Antunes e Toni Bellotto (Titãs)

Li Travassos, de Florianópolis

Dia 14 de abril deste ano da Graça de 2010, o Senado brasileiro aprovou o PL de Lei de Jarbas Vasconcelos (PMDB), que prevê a possibilidade do trabalhador usar o FGTS para a compra da casa própria de filhos maiores de 21 anos, casados ou em união estável, que ainda não tenham imóvel. Sem entrar na discussão de que a Lei está escrita (e acima de tudo, está sendo divulgada) de uma tal maneira que chega a gerar dúvidas se uma mulher pode usar seu fundo de garantia desta maneira, e também se uma filha mulher pode aproveitar o benefício (de tanto que são machistas os termos usados), quero destacar, aqui, o fato de que o receptor da verba precisa ser, necessariamente, casado ou em união estável. Posto que em nosso país as uniões homossexuais não são reconhecidas, e posto que há um número imenso de pessoas que vivem sozinhas, quero crer que temos, embutidos nesta Lei, mais de um tipo de preconceito.

Preconceitos estes ligados a questões de gênero. Acima de tudo, preconceitos sobre a função exclusivamente reprodutiva das uniões. Já não bastasse o "Bolsa família", que apesar de ser uma ótima forma de diminuir a desigualdade social, deixa de fora os mais miseráveis, justamente os que já perderam casa, família, e se encontram literalmente na rua; ou o Programa "Agricultura familiar", que eu não canso de alertar que é um incentivo enorme ao trabalho infantil na roça, já tão difícil de combater neste país, além de dificultar a posse de terra pela mulher casada; agora temos esta história do FGTS.

Vejam bem que não pretendo fazer propaganda contra o Governo Federal atual, até porque a nova lei é do PMDB, e o "Bolsa família" é uma adaptação do "Bolsa escola", que também previa, mais obviamente ainda, a existência de crianças em idade escolar na família, é que é do tempo do governo FHC, PSDB, portanto. Não, minhas senhoras e meus senhores, não se iludam: esta questão de priorizar a família, a reprodução, a existência constante de crianças em idade escolar em cada lar, é uma mania nacional e suprapartidária. Mania esta que me causa estranhamento, posto que temos crianças em excesso em nosso país, especialmente nas famílias de baixa renda. Crianças que não têm escolas para ir, que não têm comida suficiente para comer, que muitas vezes não têm perspectiva nenhuma de um futuro com um mínimo de dignidade. Então porque todo este incentivo à procriação?

Casais heterossexuais que não desejam ter filhos sofrem pressões terríveis de toda a sociedade, e em especial de suas próprias famílias de origem. Casais homossexuais que querem adotar, não podem. Mesmo casais hetero têm dificuldades diversas a enfrentar quando querem adotar, posto ser prioridade máxima que as crianças fiquem junto a seus pais biológicos. Tem gente que casa e tem filhos porque é normal, é o esperado, todo mundo faz isso. Nem se pergunta se é isso que quer, se vai lhe fazer feliz, se está preparado para isso. Especialmente, se está preparado para ser pai ou mãe, ou ambas as coisas ao mesmo tempo (o que é cada dia mais comum).

Tem gente que casa para não ter que ficar só, pois não se suporta. Ou vai dividir o aluguel com alguém, alugar um quarto para alguém em seu imóvel próprio, qualquer coisa para ter gente por perto, para não ter que ficar sozinho quando chegar em casa. Outros, que inevitavelmente acabaram sozinhos, arranjam cachorros, gatos, periquitos ou papagaios, de preferência assim, no plural. Bichinhos de estimação que serão tratados como filhos, alimentados, acariciados, educados e punidos, conforme a necessidade (do animal, ou do dono?). Mulheres viúvas ou divorciadas cujos filhos crescem e vão cuidar da vida são as que mais costumam "adotar" bichinhos de estimação. Outros, ainda, trabalham o dia todo, arrumam cursos sem fim para fazer de noite, e tratam de marcar diversos compromissos para o final de semana, tudo para não ter que ficar dentro de sua "casa vazia".

Algumas pessoas, quando se fala de segurança alimentar, ainda pensam exclusivamente na distribuição de alimentos crus, como acontece na distribuição de "cestas básicas". Mas quem iria prepará-los? Por que se pressupõe que cada pessoa faminta sabe preparar uma refeição de forma adequada, ou que há alguém por perto capaz de fazer isso por ela? Família é sinônimo de uma casa com fogão, geladeira, louças, talheres, panelas, e mãe. E mãe tem que saber cozinhar, tem que ter tempo para isso e, de preferência, deve adorar alimentar os filhos, o marido, e os pais ou os sogros que acabam indo morar ali... Pessoas solteiras não dispõem sequer de alimentos em quantidades adequadas, que consigam consumir até o fim, sem ter que jogar fora a metade. Tudo é produzido para atender a uma grande família!

Casa em que mora uma pessoa sozinha não pode ser chamada de lar. Lar é onde mora ao menos um casal, de preferência com filhos. Quer um exemplo? Na música "Notícia de jornal", de Haroldo Barbosa e Luiz Rei, temos que: "Tentou contra a existência num humilde barracão, Joana de tal por causa de um tal João. Depois de medicada, retirou-se pro seu lar. Aí, a notícia carece de exatidão. O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou"... Quer dizer que João, ao ir embora, levou consigo o lar? Que eu saiba, quem perde o lar é quem é "posto na rua", "posto para fora". Não quem fica só...

Quem sempre morou só não pode chamar a casa de lar, nem pode se dar ao luxo de querer tudo limpo e no lugar o tempo todo. Afinal, para quê? Quem vai ver? Exemplo? Em uma semana muito ocupada reclamei, em momentos diferentes, com duas pessoas que nem se conhecem (uma mulher e um homem que, por sinal, moram sozinhos) que, apesar de levantar cedo, acabava tendo dificuldades em ser pontual, pois não conseguia sair de casa sem deixar a cama arrumada, passar uma vassoura no chão... Os dois me responderam alguma coisa do tipo: "Mas por quê? Você mora sozinha, não tem que dar satisfações a ninguém..."

Este tipo de comentário me choca por dois motivos. Primeiro, porque demonstra a crença de que uma mulher só pode querer ter a casa limpa e arrumada se for para agradar outras pessoas. Se for apenas para ela ficar feliz, ter saúde (sujeira traz doença), ficar em um lugar bonito, não há a menor necessidade... Depois, por estas pessoas que me conhecem muito bem acreditarem que, caso eu tivesse um marido, eu faria coisas na casa por sentir que lhe devia "satisfações"...

Da mesma forma, me incomoda sobremaneira quando comento com alguém que não gosto de cozinhar, e deduzem: "É claro que você não gosta. Cozinhar apenas para si mesmo é muito chato!" É? Conheço mais de uma pessoa que adora cozinhar, e mora só, e continua adorando... E para quem não gosta de fazer comida, seria melhor cozinhar só para si, o quê e quando quisesse, ou para um bando de gente mal agradecida, cada um querendo comer coisas diferentes em horas diferentes, que o que costuma acontecer em uma família?

Família dificilmente é legal. Sejamos sinceros. As propagandas de margarina são feitas por extraterrestres... Quem se dá bem com todos os irmãos? Quem acha que recebeu do pai e da mãe amor suficiente? Quem realmente tem mais de um filho e ama a todos de forma exatamente igual? Quem não brigou com os irmãos por conta do amor dos pais? Quem não sabe que esta briga continua na hora da divisão da herança? Quem não gostaria de mudar totalmente algum membro de sua família? Quem, depois de muitos anos de casamento, pode dizer que não diminuiu o amor ou o respeito por seu cônjuge (fora a paixão, que saiu voando pela janela já nos primeiros meses ou anos)?

Família é o local de produção de violência doméstica, de grande parte do abuso sexual infantil, é onde principia o trabalho infantil... Família gera dependência econômica, emocional... Família exclui, traumatiza, marca. Família enlouquece. Mas parte do movimento antipsiquiátrico, que acredita que a loucura de um sujeito é sintoma da loucura de toda a família, quer acabar com todos os espaços de moradia alternativa do psicótico, e quer que ele more com a família. Não estou questionando acabar com os horríveis hospitais psiquiátricos onde a pessoa "em sofrimento psíquico" é tratada muito pior que um animal, mas devolver esta criatura justamente para a família que o enlouqueceu não é quase uma maldade maior ainda???

Falar em maldade, malvada sou eu, devem estar pensando alguns. Especialmente aqueles que foram abençoados com famílias relativamente legais. Malvada ou não, falo da realidade que vejo todos os dias. Falo de histórias que ouvi no meu consultório, da boca de meus amigos, no ônibus, nos banheiros públicos, em grupos de apoio, no movimento de mulheres... É verdade. Do jeito que a família está instaurada, com uma tentativa de predominância do homem, com uma divisão de tarefas injusta, com uma série de trabalhos domésticos sendo feitos por cada família separadamente, quando poderiam ser "terceirizados", com os filhos sendo considerados responsabilidade unicamente dos pais, e principalmente das mães, e tantos outros erros óbvios que não conseguimos mudar nestes zilhões de anos em que somos humanos, família não é, decididamente, o espaço de amor e segurança que tantos insistem em afirmar que é... Eu não perco a esperança de que podemos mudar. Mas, para isso, teríamos que querer mudar, todos nós. Teríamos que dar um basta. E, infelizmente, não acho que isso seja para logo.

Enquanto isso, vamos continuar aceitando (vamos?) estas leis e projetos ligeiramente anticonstitucionais, que parecem querer garantir a sobrevivência da raça humana, como se o mundo precisasse ser repovoado... Na verdade, acredito que, ingenuamente ou não, nossos governantes pretendem manter o status quo: muita mão de obra barata para o serviço braçal, a mulher muito ocupada com o serviço doméstico e os filhos para poder competir com os homens por conhecimento e mercado de trabalho em pé de igualdade, os filhos totalmente subordinados aos pais, inclusive através da culpa, o que vai levá-los a cuidar dos pais idosos, sem que o Estado tenha que se responsabilizar por isso... Mas este último item é assunto para uma outra conversa, um texto que estou evitando escrever, mas está me rondando há muito tempo, feito um fantasma. Uma hora sai... Por hoje fico por aqui, esperando que você não esteja me odiando muito...

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