quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

“Tudo que é sólido desmancha no ar” (e o escândalo do TJ-MT)

* Por Keka Werneck

Eu ainda estava na faculdade de Jornalismo, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde me formei, quando fiz uma matéria sobre a desigual pirâmide salarial no Brasil. Isso já faz tantos anos, quase 20, duas décadas...O tempo voa! Mas nunca esqueci que os braçais, como garis, estão no assoalho da pirâmide: por isso vivem muito mal, comem mal, vestem-se mal, são mal tratados; e os magistrados, como juízes e desembargadores, no topo: portanto vivem muito bem, comem bem, vestem-se bem e são bem tratados. Quis refletir na matéria sobre o porquê do abismo salarial entre as duas categorias, que, para o mundo do trabalho, têm papéis tão relevantes. Tinha poucos elementos políticos à época. A matéria ficou limitada aos dados que consegui, a entrevistas, pesquisas e à voz do meu coração. Eu acreditava na imparcialidade. A escola clássica de jornalismo ensina e reforça essa idéia até hoje. Mas a imparcialidade é uma lenda. Não há imparcialidade. E não há motivos para tamanho abismo salarial, a não ser a luta de classes, claro!

Satisfez minha sanha por um tempo a explicação de que juízes e desembargadores devem ganhar muito bem mesmo, porque assumem tarefa hercúlea, de grande vulto social. Imaginem vocês o complexo que é dizer quem está certo, quem está errado. Ganhar bem significa para os magistrados cerca de R$ 30 a R$ 40 mil por mês.

Se é tarefa nobre julgar, os garis fazem o quê? Mal damos conta de cruzar com um caminhão caçamba na madrugada silenciosa da cidade, passando de carro, que é ato instantâneo acelerar um pouco mais e tapar o nariz. Quem cataria o nosso fétido? Esses homens que, para quem olha ao longe, de dentro de seus Corolas, talvez pareçam ser de fato de uma estirpe inferior, ao ponto de dialogarem com bichos de esgoto. E há uma naturalização disso. Então fica combinado que devem mesmo ganhar mal: um salário mínimo por mês, nada mais.

Mais se os juízes ganham tão bem para que não pequem e sejam justos, porque também são atentados a ganhar ainda mais, em escusas artimanhas, em enrolados esquemas, em ardilosas transações? E por que tantos garis, ganhando tão pouco, não saem por aí roubando, matando, devolvendo à sociedade o lixo imposto a eles todos os dias?

Após a última crise do capital, o intelectual alemão, Karl Marx, jornalista, fundador da doutrina comunista, a quem a elite neoliberal internacional tentou por um século jogar no calabouço dos loucos, agora ressurge, livre da camisa de força, com sua lucidez de sempre, para nos relembrar que a luta de classes está aí e explica muita coisa. Explica por exemplo o abismo salarial entre juízes e garis. E também indica saídas. “Sem sombra de dúvida, a vontade do capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites”.

O Poder Judiciário, no Brasil, é um “simulacro”. Supera a realidade social. Se está sempre blindado, do outro lado da pirâmide, ou melhor, no subsolo dela, encontra-se o ladrão de galinha, totalmente exposto, sofrendo o "açoite" das penitenciárias, da opinião pública, da miséria humana. Roubou um pão? Que Morra!

Nesse episódio que macula o Poder Judiciário de Mato Grosso, devemos comemorar. Mostra a ante-sala das negociações. Não bastasse dinheiro de salários socialmente surreais, os olhos crescem também para o erário. Seria o sinal dos tempos?

Estariam em falta no mundo das togas homens e mulheres preocupados com a justiça social?

Disse muito bem o físico alemão, Albert Einstein, do alto patamar galgado pelo autor da teoria da relatividade: “Não tentes ser bem sucedido, tenta antes ser um homem de valor”. O problema é que isso não combina com o mundo do capital, onde ter é o que vale.

As coisas cheiram mal, diriam garis, que se assolam dia após dia, nessa rotina de mierda. Mas para Antônio Gramisci, político, pedagogo, filósofo e teórico marxista italiano, “contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”. Então, façamos um outro lugar para se viver!

É preciso denunciar! E a imprensa deve cumprir esse papel. Deve sair dos factóides rotineiros e cumprir sua função de aprofundamento e acompanhamento dos fatos.

Parece que, pela lama visível, a moralização é tarefa utópica. Mas não é.

“Mudar é difícil, mas é possível”, garante Paulo Freire, educador recifense, que se destacou pelo projeto de educação popular, voltada para a consciência, deixando um legado milionário para a construção de um povo.

O escândalo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso é um canto a Karl Marx, que disse, sabiamente, no século passado: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

* Keka Werneck é jornalista em Cuiabá

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