sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Os algozes humanitários

Por Elaine Tavares - jornalista

A gente do Haiti é gente de muito valor. Foi o único país, no mundo, em que os escravos fizeram uma revolução contra seus senhores e venceram. Foi em 1791, logo depois da revolução francesa. A ilha caribenha ferveu em desejos de liberdade e o povo armado - mais de 500 mil negros num espaço onde viviam apenas 32 mil brancos - botou os colonizadores franceses para correr. Toussaint de Loverture, Dessalines, Alexandre Pétion. Gigantes da luta de libertação que, com suas idas e vindas, erros e acertos, fizeram do Haiti, com a força das gentes, uma nação livre, digna, soberana. Primeiro país abaixo do Rio Bravo a se fazer independente em 1801. Petión acolheu Bolívar e foi o responsável pela virada na cabeça do libertador. Deu a ele guarida, ajuda e só pediu em troca que ele libertasse os escravos da América do Sul. Bolívar mudou.

Mais tarde, as lutas intestinas revolveram o país e várias lideranças passaram pelo poder, até que no início do século XX o mal fadado vizinho do norte, os Estados Unidos, decidiu intervir no país para cobrar dívidas, uma história muito conhecida pelos países latino-americanos. Desde aí, o povo do Haiti sofreu fortes reveses, culminando com a dinastia Duvalier, sanguinária ditadura de pai e filho, que perdurou de 1957 até 1986. Regime de terror, tortura e perseguições, enfrentado com valentia pela população, que pagou caro por isso. A esperança veio em 1990 quando o povo elegeu Jean Aristide, um padre ligado a teologia de libertação. Mas, de novo, os Estados Unidos meteu o bedelho na vida do país, evitando que por ali tremulasse alguma bandeira vermelha. A eles, no Caribe, já bastava Cuba. Sem grandes riquezas para serem cobiçadas, a gente do Haiti sofreu “preventivamente”. Em 2004, depois de idas e vindas, com o apoio dos EUA, Jean Aristide se elege novamente, mas é deposto em seguida por um golpe, igualmente apoiado pelos EUA, mergulhando novamente o país num caos político.

É quando entram as “forças de paz” da ONU, ocupando o Haiti a pedido dos Estados Unidos. Vários países, tendo Brasil à frente, enviaram suas tropas, alegando que estavam ajudando a manter a ordem, De novo, o povo do Haiti ficava sob a tutela das armas alheias, como se não fosse capaz de definir por si mesmo o seu destino. Desde aí o país está ocupado militarmente, com denúncias diárias de mortes, torturas, estupros, violências de toda ordem. Morte diária, cotidiana, naturalizada. Estas não saem nos jornais. Contra elas não gritam os Casoys, os Bonners e outras bocas alugadas.

Agora, não bastasse toda esta história de dominação, o Haiti sofre uma tragédia natural, uma a mais, nem tão natural, já que é resultado da destruição que vem sendo imposta ao planeta pela ganância dos donos do capital. Milhares de pessoas estão mortas, ceifadas num único dia. Tragédia massiva. Então os jornais se inundam de matérias sobre a ajuda humanitária. Países de todas as cores enviam remédios, alimentos. A Globo e CNN destacam a ajuda estadunidense, “governo tão bom”, o mesmo que deixou a míngua os atingidos do Katrina. As pessoas choram diante da TV, organizam ajuda solidária nos seus bairros, observam aliviadas a humana bondade da França, da Alemanha e até do FMI (pasmem) que decidem doar alguns punhados de dólares. Falam ainda da providencial presença dos “cascos azuis”, soldados da ONU, que estão ajudando no resgate das vítimas, no auxílio aos feridos, etc...

Sim, me compadeço com a tragédia haitiana deste triste 13 de janeiro. Mas, com Venezuela, com Cuba e com outros tantos lutadores sociais tenho feito isso desde que as forças da ONU entraram no país a pedido dos EUA. Contra Lula gritando pela retirada das tropas, e com Fidel e Chávez, entendendo que se alguma ajuda precisava o povo da ilha caribenha era a de médicos, engenheiros, professores, dentistas, enfim, gente que amparasse e fortalecesse as gentes. Não soldados armados para reprimir, matar, mutilar, torturar, estuprar. Doem em mim, sim, as mortes massivas deste dia 13, mas me doem também, com igual força, as mortes cotidianas, recorrentes e naturalizadas no Haiti, no Afeganistão, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na periferia de Florianópolis. A ajuda humanitária nestes dias de inferno pós-terremoto não pode ser uma mera musculação de consciência daqueles que doam um quilo de arroz e dormem tranqüilos. Há que se comprometer com a proposta de mudança e libertação. A tragédia haitiana é muito maior do que este terremoto de 13 de janeiro. O terremoto da dependência, da subordinação, da superexploração do trabalho, da ocupação armada é cotidiano, e já dura tempo demais. O país está em escombros e não é de hoje. Ajudar as vítimas da catástrofe do tremor é urgente e necessário, mas não dá para saudar os algozes. Estes que posam de bons moços, enviando alguns dólares, são os responsáveis pelo terremoto cotidiano. Isso não podemos esquecer!

2 comentários:

CG disse...

Parabéns, querida Elaine. Texto maravilhoso, de fôlego. Vou repassar para meus contatos, para que todos saibam um pouco do que é o verdadeiro Haiti, e não pelas lentes Globais. O Haiti é aqui também. Beijos carinhosos. Carmen Garcez

Cândido Cunha disse...

Postei hoje no meu blog:
O Haiti está em péssimas mãos

Li agora a pouco no blog dos “Pesquisadores da Unicamp no Haiti” a “política de ajuda humanitária” da embaixada do Brasil no Haiti para os brasileiros civis que lá estão (Veja em Nossa embaixatriz: notas sobre a atuação diplomática). Fico imaginando que se a diplomacia brasileira se comporta assim diante de brasileiros bem escolarizados e informados, o que será feito com o povo haitiano? As declarações da embaixatriz do Brasil no Haiti é a coroação das barbaridades que estão sendo cometidas, mais uma vez. Contudo, em matéria de barbaridade a lista é grande, mas elas também são ilustrativas e educativas.

Ontem, desde o início da tarde, a Globo fazia chamadas para uma matéria onde a correspondente Lilian Teles teria acompanhado o resgate de uma mulher soterrada em Porto Príncipe. Ao final do Jornal Nacional, a reportagem começa com Lílian “desfilando” por Porto Príncipe com carros da Onu acompanhada de soldados brasileiros, todos com fuzil na mão apontando para o povo. A velocidade do carro quase põe abaixo o “furo jornalístico”. Alguém corre atrás do carro pedindo ajuda. Lílian pede que parem o carro, única razão para o automóvel realmente parar. Os soldados, todos armados, vão até os escombros e constatam o que os haitianos que ali estavam já sabiam: havia alguém vivo ali. Os soldados não largam os fuzis nem mesmo para pegar na mão da mulher, uma enfermeira soterrada sobre aquilo que fora um hospital. Eles não têm pás ou outros equipamentos, mas continuam a segurar os fuzis e a empurrar os haitianos que lá estão para que as câmeras da Globo continuem a registrar a “emoção” da repórter e a “solidariedade” do soldado brasileiro. Há um corte na reportagem e logo em seguida se vê bombeiros, sabe-se lá da onde, pois a matéria não fala, retirando os escombros. A mulher já aparece com o corpo semi-soterrado. Novo corte: Lílian já está na base brasileira, longe dos escombros e explica que não pode ficar até o fim do resgate, pois não daria tempo de voltar antes de escurecer. Antes anuncia que o circo deve continuar, pois a mulher foi trazida para a base brasileira e lá a repórter irá procurá-la para um “emocionante encontro”.

Ainda ontem, ao regressar do Haiti, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, disse a imprensa que chamar os brasileiros ainda não encontrados de desaparecidos é um “eufemismo”, já que todos devem está mortos. Os familiares destes militares devem está chocados diante de tamanho “compromisso” do chefe-maior das forças armadas de nosso país. E os haitianos desaparecidos, terão a mesma "dedicação"?

Soma-se ainda as declarações preconceituosas e oportunistas do Cônsul do Haiti em São Paulo que disse que o terremoto era bom para ele, pois assim o país se tornava conhecido e que a culpa era da “macumba” praticada pelos africanos (Veja em Desgraça é boa para nós, diz cônsul). Preconceitos, não tão explícitos, também estão em várias matérias que “explicam” que muitos corpos estão na rua devido a uma “tradição vudú” e que os haitianos cantam porque já estão “acostumados com as tragédias”.

É lamentável que a maior tragédia natural a atingir o Haiti esteja acompanhada de uma tragédia de desumanidade tão grande da mídia e de governantes.

Contudo, isso me parece ser apenas a ponta do iceberg de algo muito pior: o governo Lula está tratando a tragédia como uma “oportunidade” do país se “consolidar”, tanto que o Brasil está disputando a coordenação da “ajuda humanitária”; boa parte dos recursos que estão sendo doados por estados, instituições e pessoas deverá ser canalizado para a a ONU manter tropas no país a longo prazo, ampliando estas forças com a desculpa de “reconstrução do Haiti”; a cobertura da mídia reforça a idéia que as tropas estrangeiras estavam no país para “ajudá-lo”, mentira facilmente desmontada pela ausência de tratores e outras máquinas no país e pelo farto material bélico que se vê pela TV, e só repete os preconceitos racistas e classistas contra o lutador e heróico povo negro haitiano.