quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Juro que vi e ouvi

Celso Vicenzi

“Meninos, eu vi!” Menos do que o índio timbira no épico I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, mas eu vi. Juro que vi. Vi e ouvi. E não vou esquecer mais esta pérola da mídia televisiva. E não foi em uma emissora de quinta categoria, não. Era a principal do país. Data: 18 de setembro de 2009, pela manhã. A apresentadora entra ao vivo, durante a programação, para anunciar que o vice-presidente da República, José Alencar, fora internado às pressas na noite anterior, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Como se sabe, aos 77 anos, José Alencar trava uma batalha incansável contra um câncer de abdômen há mais de uma década (procurei no Google e alguns jornalistas falam em 12 outros em 15 anos; pelo menos não havia discordância sobre o número de cirurgias: 15 no total). Nessa não menos épica resistência às frequentes internações para tratamento, Alencar tem demonstrado uma obstinação admirável e um bom humor incomum para quem padece dessa enfermidade. Pois bem, na noite de 17 de setembro, o vice-presidente, mais uma vez, sente mal-estar e é prontamente transferido de Brasília para São Paulo. O repórter da Globo, já o aguardava na entrada do hospital e tão logo Alencar desembarcou, partiu em sua direção com a seguinte pergunta: “O senhor está se sentindo bem?”

Sim, juro, foi isso que ele perguntou depois de uma década de luta contra um câncer, 15 cirurgias e sabe-se lá quantas internações. Estou pasmo até agora. O repórter teve tempo suficiente para escolher a pergunta. E eis que ele não titubeia: “O senhor está se sentindo bem?” Alencar foi novamente um gentleman e alinhavou algumas considerações triviais, tentando esboçar otimismo e, claro, desvencilhando-se o mais rápido daquele repórter. Mas poderia ter sido mais irônico: “Estou ótimo! Estava em Brasília até há pouco, sem fazer nada e pensei: por que não fazer uma visita aos médicos do Sírio-Libanês?”

Corta para Santa Catarina. Escolha o menu: pode ser uma daquelas enchentes arrasadoras, soterramento de casas ou vendavais e ciclones que devastam tudo por onde passam. Perda total e mortes. Já perdi a conta de quantas vezes ouvi repórteres, microfone em punho, invadindo espaços privados – sem pedir licença – e nestes cenários onde o silêncio fala mais alto, encaixarem a pergunta: “A senhora está triste?” Ou então: “Como o senhor está se sentindo?”. Perguntas endereçadas, não raro, a cidadãos e cidadãs que perderam casa, móveis, tudo – e choram a morte de familiares.

Recentemente, uma das perguntas foi: “E a senhora não está triste com tudo isso?” Para sorte do repórter, que merecia ouvir impropérios, sabiamente respondeu: “Não, estou feliz porque estou viva".

Saber perguntar é o que há de mais importante na atividade jornalística. Sem boas perguntas não se extrai boas histórias, não se constroem bons textos, bons títulos. Não se chega à apuração dos fatos, não se compreende o que está acontecendo, não se desmascara o mentiroso e, sobretudo, permite vida fácil a quem se especializou em enganar a opinião pública. Perguntas precisam incomodar os poderosos, encurralar os falsários, revelar aquilo que se esconde e que é de interesse público. Não por um simples exercício de contestação, mas porque a essência dos fatos não costuma vir à tona com facilidade. Há muitas técnicas para se obter boas respostas. Mas todas dependerão de boas perguntas. E se o jornalista não sabe o que busca, dificilmente encontrará. Se só pergunta por perguntar, despretensiosamente, superficialmente, estará a quilômetros de distância da competência que se exige para exercer a função. Porque com ou sem diploma, jornalistas são o oxigênio das sociedades democráticas.

Há diferentes tipos e técnicas de entrevista. O bom entrevistador saberá escolher a abordagem mais adequada para cada tipo de entrevista e de entrevistado. Por isso, é fundamental a preparação, que começa com uma boa formação profissional e leituras, muitas leituras sobre todos os principais campos do conhecimento humano. Não saberá perguntar quem não se interroga sobre o que acontece no mundo. Se não investiga as razões de algo ser como é, ou aparenta ser. Teoria, técnica, intuição, delicadeza, conhecimento do assunto, sensibilidade, argumentação, clareza, improviso, criatividade. Tudo pode ser usado para obter boas respostas.

Jornalista é alguém que precisa fazer perguntas para tentar compreender os fatos, desvendar a realidade, decifrar o ser humano, entender os mecanismos que desencadeiam tragédias que poderiam ter sido evitadas e, principalmente, saber quais interesses estão em disputa e quem são ou serão os beneficiados. Ou não é um jornalista, mas um segurador de microfone. Um anotador de recados.

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