domingo, 31 de maio de 2009

A Serra em mim X – Paraty produto?







Cantos de Paraty

Míriam Santini de Abreu

Um mal-estar, quase uma irritação, cresceu em mim feito uma onda no primeiro dia em Paraty, no sul do Rio de Janeiro. O motivo foi a forma como tudo ali, especialmente no Centro Histórico, é organizado de forma a provocar uma certa impressão em quem chega. A impressão de se estar em um cenário, e não na vida real. A isso se somava o fato de, naquele dias de fevereiro, a cidade abrigar o Bourbon Festival Paraty, com jazz, blues e soul, com bandas do Brasil e dos Estados Unidos. Havia muito turista na cidade, boa parte desembarcada de navios vindos do exterior. Foi no segundo dia que consegui me desvencilhar daquela primeria impressão, até porque, no segundo dia, a gente já se sente um pouco da cidade, e cumprimenta até o atendente do supermercado.


Ouvi muito em Paraty observações sobre o tipo de turista que a cidade deseja. Nada diferente do que se houve em Florianópolis, que, na ótica do governador Luiz Henrique da Silveira, só deveria ser destino de quem têm muito dinheiro para gastar. Também em Paraty o “trade turístico” quer atrair europeus, asiáticos e norte-americanos. A justificativa é que a cidade histórica, que foi descoberta nos anos 1980, recebeu gente demais, o que afetou a infra-estrutura e a manutenção do patrimônio histórico. Então, a idéia agora é “selecionar” o turista.


Isso faz emergir uma série de questões, porque dá somente a quem tem muito dinheiro a possibilidade de desejar ver, estar, sentir, caminhar “al di là”, o que está depois dos lugares visíveis, o que está além do além.


O fato é que esse desejo, que é da raça, é do humano, quando apropriado pelos tentáculos do sistema capitalista, vira, como tudo o mais, mercadoria.

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Por isso hoje se diferencia o turista – que “conhece” toda a Europa em 10 dias - do viajante, que imerge no lugar outro onde está. Mas pesquisei e descobri que mesmo essa diferenciação já foi apropriada pelo mercado. O artigo de Ana Selva Castelo Branco Albinati, “NO SERTÃO E VEREDAS DE GUIMARÃES ROSA: O ESTÉTICO NA LITERATURA E O ESTÉTICO NO TURISMO”, disponível em
http://www.turismo.pucminas.br/r1n1/artigo_12.pdf , revela como isso se dá. Ela cita Ana Fani Carlos ao dizer que “o turismo não proporciona o conhecimento do lugar, mas sim o seu reconhecimento através de imagens selecionadas que se tornam ícones, que representam o lugar, o que significa um empobrecimento violento da própria experimentação estética à qual o turista se propõe. Como fenômeno de massa, a viagem de turismo só pode se organizar de forma `industrial`, em série, transportando para o lazer os mesmos princípios de racionalização da qual pretensamente se quer fugir. Vende-se, na verdade, um certo modo de ver [...] Esse empobrecimento da experiência estética proporcionada pela atividade turística é objeto de reação por parte daqueles que querem, porque podem, se distinguir da massa de turistas, reclamando para si o título de viajantes, cuja métrica é a experimentação diferenciada do lugar”.

A autora observa que tal diferenciação foi retratada por Cecília Meireles em Crônica de viagens, da qual destaca o ensaio Roma, turistas e viajantes: “Grande é a diferença entre o turista e o viajante. O primeiro é uma criatura feliz, que parte por esse mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas, como do mundo, com a curiosidade suficiente para passar de um ponto a outro, olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma agradável fluidez, sem apego nem compromisso, uma vez que já sabe, por experiência, que há sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a véspera. O viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá”.


Outro autor citado por Ana Selva Castelo Branco Albinati é Hans Enzensberger, que chama a atenção para as raízes espirituais do turismo moderno no romantismo do século XIX: “a busca da liberdade em uma sociedade progressivamente racionalizada identificada pelos românticos na vida fora das regras, na natureza idealizada e na nostalgia da história foi apropriada pela atividade turística. No entanto, estas imagens que traduzem o anseio de liberdade, ao serem apropriadas são pervertidas pela lógica comercial da atividade turística, gerando assim a sua contradição mais própria que é a necessária falseação do produto oferecido: o não-lugar, a não-liberdade, a não-fruição, a não-autenticidade, etc”.


O mercado passou a oferecer, então, o chamado turismo alternativo, buscando capturar pessoas que desejam viajar, mas não querem fazê-lo na perspectiva do turista comum. Albinati faz a crítica a isso: “Dito assim, de forma provocativa, o que se quer ressaltar é a impropriedade de se pensar um turismo alternativo a não ser como mais um segmento no interior do mercado de turismo. O turismo alternativo não tem condições de se apresentar como alternativa ao turismo convencional no sentido de substituí-lo ou negá-lo, mas tão somente de ser incorporado como um segmento que atende a um público específico, provavelmente mais sofisticado, mais sensível, mais intelectualizado, e evidentemente, que possa pagar. Dessa forma, uma opção de turismo que se apresente como uma recuperação do sentido da viagem contém dois aspectos a serem repensados: primeiro, o fato de que não tem condições de ser alternativo no sentido de eliminar ou superar o turismo convencional, e em segundo lugar, a legitimidade dessa alteridade turista-viajante que não é absoluta e que recai no preconceito de que apenas alguns são suficientemente capazes, sensíveis e cultos para vivenciar a viagem. Reescrevendo Sartre: os turistas são os outros”.

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O fato é que aparece um estranhamento quando calha de a gente poder ir além do além, especialmente para lugares que viraram produto. Talvez a palavra que melhor possa definir esse desejo de também ir além do que se espera do turista e do viajante seja a que designa o viandante, diz a jornalista Elaine Tavares. Seguir a pé pelos caminhos, sabedor de que viajar e viver não são gestos precisos. Ou então a gente pode ser apenas andarilho. Mas, para isso, haveríamos de partir apenas com um embornal e um cajado, sem reservas em hotéis nem passagens garantidas, e, à noite, parar num lugar qualquer, acomodar o corpo cansado e bradar, como fazia o jornalista Marcos Faerman: - Estalajadeiro!!!

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