domingo, 18 de maio de 2008

O ritual da nudez, após o banho de sais

Por Fernando Karl

Para iniciar o ritual da nudez, a Senhora retorna ao quarto, após o banho de sais, envolta numa toalha branca. Para entenderes bem o que é o céu na alma, observe primeiro o modo como ela se desnuda. Eu obedeço, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto a Senhora deita na cama e acaricia as pernas com óleo de amêndoas.
Confesso que foi no verão a primeira vez que vi a Senhora, no Café Graben, que era então o único lugar onde se podia observar, pela imensa janela transparente, as pessoas que andavam na rua. E elas todas iam ao açougue, à Botica da Erva Santa ou ficavam nos bancos no Largo do Paço.
No Café Graben eu tinha fome, muita fome, porque não havia comido nem uma folha de alface nem bebido um copo d’água sequer. A Senhora entrou de longo chapéu azul, como se usava naquela época, e sua nuca muito branca foi o que de imediato me chamou atenção. Ela se sentou próxima de gordas senhoras, nas suas ricas vestimentas que, ao fundo do Café Graben, faziam barulho com o garfo e a faca e davam com a língua nos dentes sobre um assunto ou outro, sempre banal.
No momento em que a Senhora se levantou para ir ao banheiro, eu fui atrás, um pouco encharcado de vodca, confesso, e aconteceu dela se espantar quando o animal que há em mim arrancou cada peça de sua roupa e ali a Senhora ficou, no meio do banheiro, com a nudez branca e um tufo de pêlos negros entre as coxas. Confusão? Tumulto? Nada disso. Ela colou seu corpo no meu e fiquei durante minutos passando a língua nos ombros, nos quadris, no púbis, com a intenção de secar a chuva que nestes lugares havia se acumulado.
Depois que saímos do banheiro do Café Graben, a Senhora foi levada em braços para a Botica da Erva Santa, veio o farmacêutico, era noite; a Senhora tinha a cabeça rachada, e da fenda da cabeça tentava sair, com dificuldade, um pássaro azul com garras afiadas que bateu asas e singrou ao telhado de um casarão próximo.
Dali do interior da Botica pude fazer sinal a um tílburi que por ali passava; e retornamos, eu e a Senhora, ao sobrado onde ela residia.
O tílburi no meio do caminho atropelou uma menina de 12 anos. Eu escutava a respiração da menina, com a alma nos olhos, incapaz de desvendar o motivo porque ela havia acabado de morrer. O dono do tílburi fugiu e nunca mais foi visto.
Por muito tarde que chegássemos ao sobrado da Senhora, não estávamos com sede, ela adormeceu e a coloquei na cama.

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